quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Chianti Classico - Escanção

 

No Clássico a Inovação

Ainda que a vitivinicultura seja milenar e por tantos e tantos sítios da Europa não faltem registros de vinhas e vinhos produzidos já em tempos imemoriais, o registro e normatização efetivos da produção são fenômenos mais recentes.

Ainda que, falando em Portugal, grandes clássicos como o Madeira ou o Moscatel de Setúbal sejam amplamente mencionados dentro e fora do país já há séculos, vem de algumas décadas apenas o efetivo registro e reconhecimento destes como denominações de origem. Uma honrosa e histórica exceção é o Porto; a mais antiga região demarcada e regulamentada no mundo do vinho, por obra do Marques de Pombal, ainda em 1756.

Mas ainda que tal primazia caiba de forma indiscutível ao Porto, faz-se necessário sublinhar ali acima a palavra “regulamentada”; o grande diferencial da demarcação pombalina não foi a demarcação em si, mas sim e definição clara de regras de produção, estabelecendo não apenas o onde, mas também o quando e o como da produção do vinho.

No entanto, o entendimento que determinadas regiões traziam algo de especial aos seus vinhos não era novidade. Já os Romanos tinham seus crus definidos, valorizando de modo especial vinhos provenientes de certas origens do Império. Pioneiros em tantos aspectos que foi Roma, com a propagação da cultura do vinho por todos os seus domínios, nada mais que justo que o pioneirismo da demarcação de regiões de produção no mundo moderno também coubesse aos italianos.

E foi assim; pioneiros e visionários, quatro décadas antes da iniciativa portuguesa, em 1716 Toscana demarcava a primeira região produtora de vinhos do mundo, nas colinas entre Firenze e Siena, a tradicional região de Chianti, então formada pelas vilas de Radda, Gaiole, Castellina e, um pouco depois, Greve. Nada definia ou limitava em excesso a produção, em semelhança às denominações de origem presentes, de forma que de fato foi o vinho do Porto o pioneiro nesse sentido, mas em uma nação sempre tão plural e apegada aos seus regionalismos, contar com um nível de segurança e garantia para quem buscava os vinhos de Chianti era um sopro de alento.

Mas o sucesso cobra seu preço e a falta de rigor também. Sem as normas estritas aplicadas em Portugal, em tempo a produção do Chianti foi “flexibilizada”, com mais e mais vinhos baseados na Sangiovese recebendo tal denominação, vindos de vinhedos muito mais distantes e compostos por uma combinação de uvas que em certo ponto incluía até 30% de uvas brancas, resultando em vinhos até algo diluídos.

Assim, quando as primeiras demarcações contemporâneas foram feitas, na década de 1930, a zona do Chianti havia crescido muito além de seus limites originais, compondo naquele momento uma área de produção maior do que Bordeaux! Evidentemente não tardaram reações daqueles produtores que tinham seus vinhedos encrustados nas colinas da zona original de produção, desejosos de marcar a diferença em termos de estilo e qualidade de seus vinhos em relação aos produzidos no restante da grande zona de Chianti. Foi assim que, em tempo, surgiu a zona do Chianti Clássico, primeiramente como uma subzona de Chianti e um pouco mais adiante como um DOCG de per si, autônoma em suas regras e gestão.

Hoje Chianti Clássico está construída sobre uma fundação de respeito às tradições, mas atenta às inovações e evoluções do mundo do vinho. Com o status internacional atingido por seus vinhos, não faltam aqui estrangeiros que unem sua paixão pelo vinho ao estilo de vida Toscano, com as lindas e tradicionais vilas que dominam a paisagem colinear entre vinhedos e olivais. As uvas brancas não são permitidas no Chianti Clássico e a Sangiovese deve compor um mínimo de 80% dos cortes, podendo mesmo ser vinificada e engarrafa em pureza; clones que produzem vinhos mais robustos e longevos são valorizados, de modo que a categoria Riserva, com um envelhecimento mínimo de 24 meses em recipientes de madeira, representa 25% da produção, com um estilo muito valorizado pelo consumidor.

No campo das inovações, nunca é demais lembrar que a revolução dos Supertoscanos começou aqui, ao mesmo tempo que no Bolgheri, com o lançamento do clássico Tignanello em 1971. E mais recentemente com a criação de uma nova categoria acima dos Riserva, o Chianti Clássico Gran Selezione, que demanda 30 meses de maturação e vinhos de maior estrutura e caráter.

A região do Chianti Clássico é um mergulho na história rica da Toscana e de toda a Itália, com um firme e decidido olhar rumo a um futuro brilhante.

Champagne - Escanção

 

Clássicos e Referências

A difusão da cultura do vinho por todo o Mundo foi um processo gradual. Das suas origens para a Europa e pelo Norte da África, daí para as novas terras ocupadas e colonizadas em continentes distantes, foram uma séria de processos e acontecimentos históricos, arrastando-se ao longo de séculos, milênios, até que o mapa do que hoje chamamos de “Mundo do Vinho” estivesse minimamente rascunhado.

Parte importante desse processo deu-se com as viagens, conquistas, ocupações e invasões, que vinham sempre acompanhadas de gente que já consumia e produzia e vinho e, mais do que naturalmente, desejava levar consigo esse hábito, mas para tal, não havia outro jeito senão levar consigo as próprias videiras, às técnicas e os saberes envolvidos na produção. Foi assim em quase todo canto onde hoje produz-se o vinho.

E dessa forma que se constrói ao longo do tempo os padrões, as referências, os clássicos. Regiões, métodos e estilos de vinho que servem como parâmetro, por sua qualidade, por seu primor técnico ou apenas por seu pioneirismo, traçando as linhas que seriam e ainda são seguidas.

Tome como exemplo os tintos de Pinot Noir da Bourgogne. Qualquer que seja o produtor, em qualquer lugar do mundo, em qualquer nível de qualidade, olha para a Bourgogne como seu gabarito, seja como o objetivo a ser atingido, seja como um referencial de qualidade, seja como um exemplo não desejado do qual busca-se marcar distância, é para a Bourgogne que se olha. “É tão bom que parece Bourgogne” soa como um elogio definitivo à qualidade de um bom Pinot Noir.

Hoje queremos voltar os olhos para outra região francesa que se estabeleceu na mesma posição, de referencial global para um determinado estilo de vinho; hoje vamos olhar para a Champagne!

A Champagne não é a maior região apelação para produção de espumantes no Mundo, basta citar a DOC Prosecco; tampouco é a maior em produção de espumantes pelo método tradicional, aqui sim podendo ser referido como método champenoise, nesse caso sendo superada pela DO Cava. Ainda a despeito do que digam as lendas e os marketeiros, nem mesmo foi ali que se desenvolveu o método clássico, que tem sua real origem entre os monges de Limoux ou os comerciantes Ingleses. Mas ainda assim, o primado de Champagne como a região por excelência na produção de grandes espumantes é incontestável.

Temos grandes espumantes feitos na Franciacorta, na Catalunha, na Inglaterra, no Brasil, em Portugal e tantos outros, muitas vezes, compatíveis em qualidade com bons exemplares de Champagne, mas até o momento, nunca de fato em posição de competir com os mais gloriosos exemplares de lá. Champagne, além da maestria na aplicação dos métodos de produção, soube de forma muito particular escalar essa produção, com normas claras e devidamente aplicadas, que permitem uma consistência que é invejável.

A combinação de fatores que provocou isso é única; trata-se de uma região que estava no lugar certo, no país certo, no momento histórico ideal, para conquistar cortes e elites por todo o continente, além de fornecer técnicos capacitados para que tantos e tantos países desenvolvessem sua própria indústria de vinhos espumantes. Mas no final do dia, o Champagne, assim como todo vinho, é um produto intimamente ligado à sua origem; de forma que o mais relevante aspecto, ao menos do ponto de vista do escanção, é justamente o terroir da Champagne.

Em condições normais a Champagne seria fria demais para a produção de vinhos de qualidade, devido a sua latitude; evidente que nos referimos aqui aos tempos nos quais a região foi estabelecida, uma vez que em tempos de mudanças climáticas e aquecimento global esse é cada vez menos o caso. Mas uma relativa proximidade com o oceano, além das particularidades de seu solo, criaram um ambiente adequado a maturação de uvas, justamente nas características requeridas para a produção de bons vinhos base, de baixo álcool e acidez elevada. O giz calcáreo amplamente presente na região, não só proporciona solos mais quentes, mas devido a sua maleabilidade também foi matéria prima para as construções locais desde o Império Romano, o que resultou em centenas de quilômetros de cavernas e tuneis escavados para a retirada de pedras, que hoje compõem um labirinto de adegas e caves, onde garrafas maturam, ganhando bolhas e complexidade ao longo de seu processo de elaboração.

O estilo fresco, gastronômico e atraente do Champagne vem sendo mantido ao longo dos anos, com as inevitáveis alterações promovidas pelo aquecimento da região compensadas por técnicas mais precisas de produção, redução na dosagem de açúcar na expedição, além de uma gestão cuidadosa dos vinhos de reserva, além de escolhas mais atentas na elaboração dos cortes. Além das castas principais de dominantes, Pinot Noir, Chardonnay e Meunier, também as (quase) esquecidas Arbane, Petit Meslier, Pinot Blanc e Pinot Gris tem sido olhadas com outro nível de atenção.

Além disso, já se preparando para mudanças ainda mais profundas, Champagne aprovou recentemente, em caráter experimental, mais uma casta, a híbrida Voltis, tornando-se assim a primeira AOC a adotar uma casta híbrida, tão logo mudanças na legislação Europeia abriram essa possibilidade.

Champagne é uma região e um vinho, de rica história e profundas tradições, mas de ainda maior influência, o real gabarito pelo qual a produção mundial de espumantes se pauta. A consciência dessa importância e a constante busca por adaptação e inovação são as garantias de que assim ainda será, por muitos e muitos anos.

 

Puglia - Escanção

 

Uma Puglia, Muitas Puglias

 

Sendo a Itália um dos principais países produtores e exportadores de vinhos, é mais que natural que uvas e regiões do país da bota alcancem grande status, sendo imediatamente reconhecidos por seu estilo, qualidade e tipicidade. Também é natural que, de forma não tão distinta do que se passa em Portugal, França ou qualquer outro produtor, algumas regiões de maior influência econômica e/ou histórica acabamos por alcançar reconhecimento global, tornando-se as medidas do sucesso e fama desses países.

Bordeaux, Bourgogne, Champagne e Rhône. Douro, Vinhos Verdes, Dão e Alentejo. Toscana, Piemonte e Vêneto. Com uma ou outra variação serão, via de regra, os nomes imediatamente reconhecidos pelo consumidor quando instado a identificar alguma zona de produção destas nações.

Mas como bem sabemos, o mundo do vinho não é só isso; vai além, surpreendendo sempre, com diversidade acompanhada de qualidade. Jura, Madiran, Trás-os-Montes, Távora Varosa, Alto Ádige, Campânia. Alguns entre tantos nomes, de regiões produzindo vinhos tão ou mais encantadores que os de zonas de maior renome.

Hoje queremos olhar para uma destas zonas, lá onde a Itália de certa forma “termina”, no encontro da terra e do mar, unidos pelo sol cálido e sempre presente. Vamos hoje visitar a Puglia.

Uma das regiões de maior produção no país, por muito tempo a Puglia passou desapercebida aos olhos do mercado. Região de temperaturas elevadas, clima seco e relevo relativamente pouco acidentado, sempre foi uma zona vocacionada a produção agrícola, com a videira e a oliveira ocupando parcela importante da paisagem. A produção de vinhos, ainda que sempre tenha tido suas especialidades locais, mira sobretudo os tintos do dia a dia, maduros e macios, baseados em castas como a Negroamaro e a Primitivo.

Aliás, é justamente a Primitivo que trouxe a atenção internacional no início da década de 1990, quando pesquisadores da Califórnia identificaram que a Zinfandel, até então vista como casta autóctone americana, era na realidade a mesma Primitivo da Puglia. Poucos anos depois sua origem foi rastreada ainda mais longe, na Croácia, mas nesse momento a Primitivo já havia captado a atenção do mundo do vinho.

Hoje a Primitivo segue a principal referência da região para o mundo, ainda que a Negroamaro seja vista como uma casta local de tanta ou mais importância. Também tem recebido atenção as castas locais Bombino Nero, Nero di Troia e Susumaniello.

Mas embora a visão que se tenha da região como um todo seja fundamentalmente baseada no duo Primitivo/Negroamaro, essa é só uma parte da história. De fato, quando vamos às províncias de Salento e Taranto, como solos argilo arenosos e marcada influência marítima, encontraremos o terroir ideal para o cultivo destas castas. Obtém-se aqui bons níveis de maturação com manutenção da justa acidez para entregar tintos suculentos e frutados, macios e sedutores. Das áreas mais próximas a costa, além dos tintos tem também despontado deliciosos rosados, baseados principalmente na Negroamaro, além de alguns bons resultados com castas internacionais, como a Chardonnay. Um pouco mais no interior, nos arredores da cidade de Manduria, encontraremos a popular DOC Primitivo di Manduria, dentro da qual encontra-se a DOCG Primitivo di Manduria Dolce Naturale. Aqui os solos argilosos ricos em ferro, de coloração vermelha, similares a Terra Rossa encontrada em Coonawarra, na Austrália, permitem elevados níveis de maturação para essa casta de habitual maturação heterogênea, entregando vinhos maduros, encorpados e vez por outra com algum açúcar residual, por vezes no justo ponto de equilíbrio, por vezes não, mas sempre de inegável apelo comercial em mercados internacionais.

Mas seguindo rumo norte, além da cidade de Bari e em direção ao interior, vamos encontrar uma realidade vitivinícola ligeiramente distinta. Aqui, ainda que em solo Pugliese vislumbra-se a silhueta do monte Vulture, importante vulcão que define paisagem e solo na vizinha Basilicata, mas também na zona de Castel del Monte. Aqui os solos vulcânicos e o clima de maior influência continental farão brilhar uma casta menos comum, mas de igual tradição, a Aglianico, sem sombra de dúvida a grande casta tinta do Sul da Itália, origem de vinhos de rara complexidade, elegância e longevidade.

Mais do que conhecer as principais regiões produtoras, cabe também aos Sommelier conhecer e compreender aquelas muitas vezes colocadas em segundo plano. Mais do que conhecer e compreender estas regiões, cabe também ao Sommelier explorar e compreender suas sutilezas e sua variedade. O mundo do vinho é grande e justo aí está seu maior encanto, Na Puglia e nas várias “Puglias” ali contidas, como em toda importante região produtora.

Loire - Escanção

 

Uma França de Contos de Fadas

 

Quase que literalmente, aliás! Nesse edição vamos conhecer um pouco do Loire, região que leva o apelido de “Jardim da França” por onde passei rapidamente durante o Mundial de Sommeliers realizado em Paris no início de Fevereiro.

É um conjunto de motivos que leva o Loire a ser assim conhecido; falamos de uma região que, ao menos em parte, está bem próxima da capital, Paris, onde um clima temperado, com chuvas na medida certa, propiciam uma paisagem verdejante e atraente, ideal hoje para os turistas de fim de semana, mas em tempos passados o refugio perfeito para a nobreza francesa.

Nobreza essa, aliás, que fez do Loire uma região que tem ainda nos dias de hoje uma grande concentração de castelos, posicionados ao longo dos mais de 1.000km do rio homônimo, que tem sua nascente próxima ao centro geográfica da França e desemboca no Atlântico, próximo a Nantes. Dessa combinação é que advém a referência aos contos de fadas lá do começo, muito dos quais tem sim inspiração na paisagem local.

Mas, fadas e castelos a parte, viemos aqui falar dos vinhos, que fazem dessa região um ponto de atenção para o escanção de onde quer que seja. E logo de início é importante frisar que, ainda que falemos do Loire com uma única região, em poucas regiões produtoras do mundo essa referência é tão incorreta.

Afinal, com mais de 1.000km de rio correndo no sentido Leste-Oeste, uniformidade e unicidade é o que menos encontraremos por essas bandas. Esqueça a relativa simplicidade da Bourgogne, definida por duas uvas, ou Bordeaux, com pouco mais de uma dezena delas, entre tintas e brancas, mas com estilos de vinhos muito bem definidos. Não, o Loire não entra nesse jogo. Falamos aqui de uma colha de retalhos, que em muito podemos comparar com Portugal, onde a cada poucos quilômetros tudo muda, com novos solos, microclimas, tradições, estilos e castas.

Antes mesmo do detalhamento maior, das menores AOCs e suas subzonas, o Loire é usualmente sub dividido em quatro macro regiões, começando pelo Pays Nantais, zona mais próxima ao oceano e fortemente influenciada por ele, Anjou-Saumur, com a cidade de Angers como seu epicentro urbano, Touraine, mais para o interior e, por fim, o Loire Central, já mais próximo da Bourgogne do que das zonas costeiras do próprio Loire.

Ao longo de tantas centenas de quilômetros, cortados por um importante rio e por dezenas de afluentes, forma-se uma impressionante variedade de microclimas, cada um com características muito próprias de solo e com suas próprias tradições vitivinícolas. Nesse cenário, ao longo da história, mais do que naturalmente estabeleceu-se uma ampla variedade de cultivos, com uvas perfeitamente adaptadas às condições de cada local.

Entre as castas brancas, temos três de maior destaque; a Melon de Bourgogne, plantada no litoral e utilizada nos vinhos de Muscadet, a Chenin Blanc, estrela de denominações como Savennières, Quarts de Chaume, Vouvray e outras, além da Sauvignon Blanc, que alcança sua máxima expressão nos vinhedos de Sancerre e Pouilly-Fumé. Já pelas tintas, temos Cabernet Franc e Gamay em Anjou-Saumur e Tourraine, e Pinot Noir no Loire Central.

Mas essa é uma simplificação excessiva, mesmo injusta. Primeiramente não aborda a grande variedade de estilos; brancos dos mais leves e delicados até os de grande corpo em com potencial de guarda de décadas, rosés dos mais variados, tintos sutis para o dia a dia e também de grande estrutura e complexidade, doces que vão de colheitas tardias sutilmente adocicados até vinhos de podridão nobre entre os mais complexos e densos, espumantes e frisantes, tudo isso a mais tudo aquilo no meio disso tudo.

É confuso, sim. E justamente por isso é apaixonante. Talvez mais do que qualquer região francesa é quase que irresponsável tentar resumir o Loire, não uma região mas sim uma congregação de regiões, onde além das castas já citadas encontramos ainda Malbec/Côt, Chardonnay, Cabernet Sauvignon, Grolleau, Negrette e tantas, tantas outras.

Estudar e entender o Loire é certamente dever do bom Escanção, é próprio da natureza de nossa profissão buscar esse entendimento preciso de todas as regiões relevantes. Porém, mais que isso, é um grande prazer na realidade deparar-se com tal variedade e oportunidade de aprendizado em uma só região. Bom, não só uma, pelo menos quatro... Mas vocês já entenderam, não é?

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Reino Unido - Escanção

 Reino Unido, da criação de tendências a produção

Não faltam referências no mundo do vinho que nos façam olhar para o Reino Unido, hoje como ao longo

do último milênio. Sendo hoje o mais maduro, evoluído e organizado mercado no mundo, o Reino Unido

já de muito tempo lança e cria tendências, apontando caminho e conduzido os meios de degustar,

sentir, entender e comprar vinho para o mundo todo.

O primeiro Bordeaux vendido pelo nome do Château foi ali, pelo proprietário do Haut-Brion, em sua

própria taverna; o método tradicional para produção de espumantes com a segunda fermentação em

garrafa foi, ao que tudo indica, desenvolvido lá, os grandes fortificados do mundo, Porto, Madeira,

Moscatel de Setúbal, Jerez e Marsala, foram ou incentivados ou criados pelos ingleses, as próprias

estruturas do mercado, como este se organiza, promove e comercializa o vinho, além das importantes

instituições de ensino ali fundadas, como a WSET e o IMW, que ao lado de muitos dos mais relevantes

autores, especialistas e jornalistas que difundem a cultura e o conhecimento do vinho. Por fim, junto da

França, indiscutivelmente a nação que mais influenciou e moldou o mundo do vinho como o

conhecemos.

Grande parte dessa influência foi construída ao longo de séculos, em que os diferentes reinos que hoje

compõem o Reino Unido eram prósperos e sedentos de bons vinhos, grandes consumidores, mas sem

condições objetivas de produzir, pois o clima frio e úmido constituía um obstáculo então intransponível.

Assim, desejando bons vinhos, os ingleses lançaram-se ao mar em busca de bons fornecedores e de

acordos comerciais vantajosos, que acabaram por constituir-se em importante motor da evolução de

regiões aqui já citadas.

Porém, o anseio natural de todo grande consumidor é produzir. Não faltaram iniciativas ao longo dos

séculos para a produção de vinhos britânicos e claro, não podemos nos esquecer, que durante uma

parte da Idade Média a Aquitânia, onde está Bordeaux, foi território britânico.

Mas com as dificuldades proporcionadas pelo clima, foi só com a maior evolução do conhecimento

sobre a vitivinicultura que surgiu uma produção efetivamente comercial no país. A primeira vinícola

comercial britânica dos tempos modernos foi fundada há relativamente pouco tempo, em 1952, quando

percebeu-se que castas como a Müller-Thurgau e a Seyval-Blanc tinha condições de amadurecer nas

condições climáticas então encontradas. Mas o tempo passou e as mudanças climáticas vieram, com

temperaturas médias em alta e alterações nos ciclos das chuvas globalmente, que tornaram a produção

de vinhos finos cada vez mais fácil em zonas onde antes isso seria impensável.

Aliado a isso, uma maior compreensão do terroir e da geologia do sul da Inglaterra, com zonas

específicas onde encontramos rigorosamente o mesmo solo da Champagne, incentivaram a plantação

dos primeiros vinhedos de Chardonnay e Pinot Noir pela Nyetimber, em 1988, produzindo a partir dos

primeiros anos da década de 1990 espumantes método clássico que fariam muito barulho no mercado,

sendo inclusive selecionados para as celebrações do Jubileu de Ouro do reinado de Elizabeth II.

O sucesso e a qualidade dos espumantes da Nyetimber apontaram o caminho, levando literalmente

centenas de produtores a apostarem nos espumantes. Hoje já são cerca de 3.000ha de vinhedos, com os

espumantes ocupando lugar de destaque, como o mais emblemático fruto da vitivinicultura britânica,

com vinhos em patamar qualitativo semelhante ao de grandes casas de Champagne, já com séculos de

tradição, fenômeno esse que levou inclusive empresas como Taittinger, Roederer e Pommery a


investirem ali, ainda que os custos de produção sejam um obstáculo, colocando os bons espumantes

britânicos em patamar de igualdade não só na qualidade mas também no preço dos bons Champagnes.

Em recente passagem por Londres, pude participar da feira anual da Wine GB, órgão responsável pela

promoção dos vinhos britânicos, assim comprovando a qualidade e evolução da produção local, hoje

entregando produtos bem interessantes e distintivos também entre os vinhos tranquilos. Ainda que as

castas hibridas de menor potencial qualitativo, como a Bacchus e a Siegerrebe, ainda tenham uma forte

presença, crescem os exemplares feitos com Chardonnay, Pinot Noir, Chasselas, entre outros, além do

desenvolvimento de competências técnicas que permitem a produção de vinhos muito interessantes

com castas como Solaris, Rondo e Acholon.

Produtores como Black Chalk, Gusborne, Simpsons, Exton Park e muitos outros tem apresentado

excelentes resultados, além de novas produções, de áreas ainda menos tradicionais, como o País de

Gales, onde Hebron Vineyards e Vale produzem tintos e brancos de muito boa qualidade.

Ainda que no momento pequena e focada no mercado doméstico, é questão de tempo para que os

vinhos do Reino Unido encontrem seu espaço no mercado global e tornem-se presença nas prateleiras e

cartas de vinhos pelo mundo. O que só reforça a necessidade de atualização constante do Escanção.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Ucrânia - Escanção

 Slava Ukraina!

Vinho e guerra são, infelizmente, assuntos que caminham lado a lado ao longo da história. Muitas vezes para o mal, mas não sem deixar efeitos positivos também. Vale lembrar que a difusão de um vitivinicultura mais organizada por toda Europa Ocidental se deu através do Império Romano e de sua necessidade de manter uma produção constante e confiável de vinho para o comércio mas também para a manutenção de suas legiões, nas quais a bebida fazia parte da ração diária dos soldados.

Batalhas foram travadas nos últimos dois milênios em diferentes áreas de produção, sendo talvez os mais recentes exemplos a Alsace, centro de disputas territoriais entre França e Alemanha nas duas Grandes Guerras, e a Champagne, importante campo de batalha durante o conflito de 1914 a 1918. E neste momento, ainda no início do séc. XXI, mais uma vez um conflito armado aflige parte da Europa, com a invasão da Ucrânia pelas tropas russas.

Esse não é um espaço para a discussão de política ou de suas implicações globais, econômicas e estratégicas, mas antes um espaço para falarmos do vinho e daquilo que o cerca. Neste momento, nossa escolha é falar dos vinhos da Ucrânia, partilhando a informação e permitindo a oportuna reconstrução da vitivinicultura ucraniana, com o evidente suporte daqueles que em última instância farão que os vinhos ali produzidos cheguem às taças, os escanções, de Portugal e tantos outros lugares.

Certamente que nosso primeiro pensamento ao falar em produtores de vinhos finos não é dirigido àquela região, porém a história do vinho na Ucrânia tem raízes antigas, com mais de 2500 anos de história. Em tempos mais recentes, foi no século XIX que importantes iniciativas para a produção de vinhos tiveram lugar, com a aristocracia da Rússia czarista buscando o calor da costa do Mar Negro para suas residências de verão. Já em 1822 foi estabelecida uma colônia de imigrantes suíços em Shabo, próximo a fronteira com Moldova, com o objetivo de aportar conhecimentos de vitivinicultura, mais ou menos ao mesmo tempo em que o Conde Mikhail Vorontsov construía sua vinícola e iniciava um instituto de pesquisa em Magarach, na Criméia (território ucraniano sob ocupação russa desde 2014).

Desde seu princípio, a vitivinicultura moderna na Ucrânia concentra-se nas áreas mais próximas ao Mar Negro, especialmente nas zonas de Odessa, Mykolaiv e Kherson. Proximidade com grandes massas de água é crucial aqui, para a regular as temperaturas e permitir calor o suficiente para a adequada maturação das uvas. O que não impede que haja também produção importante no interior do país, de modo especial em Zakarpattia, a apenas 60km de distância de Tokaj, na Hungria, onde a altitude desempenha o papel de moderador dos extremos climáticos.

Historicamente sempre houve uma atenção importante a produção de espumantes, que atendiam a demanda da corte do Czar e posteriormente da elite soviética, além de vinhos doces fortificados, que fizeram a fama de Massandra, vinícola de Criméia que é a mais renomada da Ucrânia, com garrafas antigas aparecendo com frequência em leilões mundo afora.

No entanto, é justamente nos vinhos secos tranquilos que a Ucrânia vem construindo uma sólida reputação, com uma “migração” para esses estilos fortemente acentuada após a ocupação da Criméia, o que permitiu às vinícolas ucranianas manter a ampliar sua penetração nos mercados local e internacional. Com uma ampla coleção de uvas internacionais, de grande popularidade, como Cabernet Sauvignon, Chardonnay, Riesling, Aligote, Rkatsiteli e Saperavi, também encontramos nos vinhedos ucranianos uma importante amostra de uvas autóctones e pouco conhecidas fora de suas fronteiras, como a Telti Kuyruk, a mais popular, além de Odessa Black, Sukholimansky, entre outras. Também encontraremos importantes volumes da casta não vinífera Isabel/Isabela, embora essa venha em declínio, sobretudo para a produção de vinhos.

Vinícolas com Shabo, Cotnar, Shustov, Kolonist, Koblevo, entre outras, além de Massandra, na Criméia, seguem em luta para preservar suas estruturas, vinhedos e vinhos, em meio as dificuldade de uma guerra brutal. Como tantos outrso desafios que a Ucrânia enfrentou em sua história, esse também há de ser superado, e as garrafas ucranianas encontrarão seu lugar nas adegas a garrafeiras pelo mundo.

No site ukr.wine você encontrará mais informações sobre a Ucrânia e seus vinhos, além de dados para você colaborar com o esforço de reconstrução ucraniano.


quarta-feira, 25 de maio de 2022

Victoria - Escanção

 Já há algumas tantas edições atrás, falamos aqui sobre uma importante região Australiana, de grande qualidade ainda que de pequeno volume, a ilha da Tasmânia. Um ponto que ali destacamos foi justamente e necessidade do Escanção moderno bem conhecer a Austrália e seus vinhos, que ocupam um espaço importante no mercado mundial, presentes nos principais mercados e nas mais importantes cartas de vinhos.

E tal conhecimento envolve a compreensão da variedade e qualidade do vinho australiano, que vai muito, mas muito além do duo Shiraz/Chardonnay encorpados e comerciais. Nunca é demais lembrar que falamos de um país de dimensões continentais, onde caberiam com sobra todos os países produtores da Europa. Logo, não devemos nunca esperar uma produção vitivinícola monocromática e monótona.

Devidos ao clima, no entanto, uma parte importante do território australiano não é adaptado à vitivinicultura, por conta de temperaturas elevadas e regimes de chuvas (em excesso ou em falta) inadequados. Salvo por uma pequena faixa de produção no sudoeste do país, próximo a cidade de Perth, a produção está toda concentrada no sudeste australiano, não grande indicação geográfica South Eastern Australia, que inclui os estados de South Australia, Queensland, New South Wales e Victoria.

Com o tema da diversidade e variedade vitivinícola da Austrália em mente, nosso tema de hoje é justamente o estado de Victoria, por tratar-se daquele que é reconhecido, nas palavras de Jancis Robinson, como o “mais interessante, mais dinâmico e certamente o mais variado dos estados australianos”, ainda que, entre os estados produtores, seja justamente o menor deles.

Pequenino, porém muito animado! O estado de Victoria tem condições de relevo e características geológicas que trazem uma enorme variação de terroir, com uma ampla variedade de vinhos em diferentes estilos e de diferentes uvas ali produzidos. Não à toa, no século XIX era a principal região produtora do país, posição que só foi perdida pela chegada da filoxera. Vale lembrar que naquela que é hoje a principal região produtora australiana, South Australia, a filoxera não chegou ainda, fator esse que deu uma enorme vantagem competitiva a região na virada do século XIX para o XX.

Em Victoria vamos encontrar regiões quentes e áridas no interior, onde a produção só é possível com irrigação, assim como áreas litorâneas permanentemente refrescadas pelas brisas marinhas, onde uvas adaptadas a climas mais frescos, como a Pinot Noir, apresentarão resultados de alta classe. Vamos de vinhedos em áreas planas próximas do nível do mar até encostas entre as mais altas do país, na região que tem os maiores índices de neve e importantes estações de esqui.

É dessa forma que vamos ter, então, uma grande variedade de vinhos aqui produzidos. É certo que teremos muitas e destintas versões da onipresente Syrah/Shiraz, desde os mais encorpados, maduros e comerciais, até versões de clima mais fresco, cheias de caráter e próximas ao estilo do Rhône Norte, mas teremos também especialidades como Rieslings de alto nível em Henty, castas italianas com grande sucesso em diferentes regiões, como King Valley, por exemplo, a Durif, produzindo tintos de mesa e fortificados em Rutherglen e Glenrowan, além da Pinot Noir, de grande sucesso nas áreas frescas nos arredores de Melbourne, Mornington Peninsula e Yarra Valley.

Aliás, estas duas últimas são os principais destaques de Victoria em termos de reconhecimento, em boa parte por estarem muito próximas de umas das maiores e mais cosmopolitas cidades do país, Melbourne. Mornington Peninsula, em particular, ao sul da cidade, tem grande influência marinha, com a baía de Port Phillip ao Norte e o Oceano ao Sul, fazendo dessa uma área que produz brancos e tintos de nervo, com marcado frescor, vinhos de leveza e equilíbrio que impressionam mesmo os mais céticos produtores de Bourgogne, usualmente convidados para a Pinot Noir Celebration, que ocorre aqui periodicamente. Sendo uma região pequena, a beira mar e muito próxima de um grande centro urbano, proliferam aqui vinícolas pequenas e quase artesanais, em propriedades muitas vezes pertencentes a moradores abastados de Melbourne.

Já o Yarra Valley, maior e com mais antiga tradição na produção, tem clima fresco e adequado a produção de brancos e tintos de rara elegância também, porém tem preços de terra mais em conta, além da presença de mais vinícolas de maior dimensão, sendo talvez a de maior destaque a unidade da Chandon Australia, ali produzindo espumantes variados mas também vinhos tranquilos de grande sucesso.

Por fim, uma especialidade da região, especialmente em Rutherglen, são os vinhos fortificados, doce, intensos, de longo envelhecimento. Por muito tempo, usando os nomes de tradicionais denominações europeias, como Port, Sherry e Tokay, hoje já abandonadas, são vinhos de elevada qualidade, feitos com apuro técnico. O mais reconhecido deles é justamente aquele que nunca “emprestou” o nome de outras zonas, o Muscat Rutherglen, vinhos intensos e doces feitos a partir da casta Moscatel de colheita tardia, longamente envelhecidos em estilo não tão distinto dos canteiros da Madeira. Informalmente conhecidos como “stickies”, devido a sua intensa doçura, teriam um estilo algo semelhante ao Moscatel de Setúbal, ainda que com suas particularidades locais.

Esse foi apenas um apanhado geral, do muito que há por aprender e degustar na encantadora Victoria.


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