Hungria e os Vinhos de Tokaj
Neste espaço que já há muitas edições temos falado sobre
países e regiões produtoras do Novo Mundo, voltamos agora à Europa; uma Europa
de tradições seculares mas que permaneceu em segundo plano ao longo do séc. XX,
voltando a receber a devida atenção e destaque após a queda do Muro de Berlim.
O centro de nossa conversa hoje é a tradicional região de
Tokaj-Hegyalja, renomada pelos vinhos doces Tokaji ali produzidos, os mais
antigos vinhos feitos a partir de uvas atingidas pela podridão nobre,
pré-datando em um século os exemplares similares do Reno.
Porém, antes cabe um, importante, parêntese. A Hungria vai
muito além do Tokaji! É um país produtor que merece toda nossa atenção, pela
sua história, variedade e qualidade dos vinhos ali produzidos. A Hungria tem um
sistema de DOCs, alinhado com a legislação da União Europeia, designado OEM,
Oltalom alatt álló Eredt Megjelöléssel, com regiões demarcadas por todo o país,
fazendo bom uso não apenas de castas internacionais ali bem aclimatadas, mas
sobretudo de sua rica coleção de castas locais, como as tintas Kékfrankos e
Kadarka ou as brancas Ezerjó e Leányka. Das muitas regiões demarcadas, cabe
destacar como zonas de especial interesse Villány, no sul do país e de grande
renome internacional, Sopron, praticamente uma continuação da região austríaca
de Burgenland, e Eger, à meio caminho entre Budapeste e Tokaj, onde produz-se o
tinto Bikavér (sangue de touro), com lendas de sua origem remontando ao séc.
XVI.
Mas, ainda que a qualidade destes vinhos e de tantos outros
seja superior, é inegável que o mais conhecido de todos os vinhos húngaros é,
de fato, o Tokaji. Aqui já cabe a primeira distinção; Tokaj Wine Region é como
eles se referem a região produtora, que fica dentro da região de
Tokaj-Hegyalja, sendo a vila de Tokaj sua principal cidade, enquanto o vinho
ali produzido é o Tokaji, com registros de sua produção desde o séc. XVII, com
a primeira demarcação da região de produção feita em 1703, antecedendo ao Porto
em mais de 50 anos, porém sem uma regulamentação das normas de produção, ponto
no qual o pioneirismo cabe a Portugal.
Tokaj fica no Nordeste da Hungria, na fronteira com a
Eslováquia, aliás, parte da região originalmente demarcada está em território
eslovaco, sendo permitida também a produção de vinho Tokaji naquele país. As
encostas dos montes Zemplén definem a geografia local, bem como tem crucial
importância na composição dos solos, estes de origem vulcânica, de diferentes
eras geológicas, conferindo variedade aos vinhedos locais. O Monte Kopasz, ao
norte da vila de Tokaj, marca o relevo da região, com os vinhedos localizados
principalmente em suas encostas, em um formato de V, com orientações
sudeste-sul-sudoeste.
Além destes aspectos, outro ponto fundamental para a
produção destes vinhos são os dois cursos d’água, o Bodrog (mais importante) e
o Tisza, que convergem no sul da montanha. Daqui nascem as névoas matinais que
recobrem os vinhedos no princípio do outono, fornecendo a umidade necessária ao
desenvolvimento da botrytis. A principal uva da região é a Furmint, cerca de
70% dos vinhedos, valorizada por sua marcante acidez, além da casca fina, que a
torna altamente suscetível a podridão nobre. Esta é complementada pela
Hárslevelű
e, em pequena quantidade, pela Moscatel, aqui chamada Sárgamuskotály, além de
volumes muito pequenos das variedades locais Zeta, Kabar eKövérszőlő.
Sua rica história, com vinhos apreciados e procurados nas
cortes europeias dos séculos XVIII e XIX, Tokaji foi um dos poucos, senão o
único, vinho do Leste Europeu que manteve algum interesse demanda nos mercados
ocidentais mesmo durante o período de influência soviética, porem não sem algum
prejuízo, pois não havia então o mesmo cuidado e primor técnico destinado hoje
a estes vinhos, sendo valorizado o volume em detrimento da qualidade (que foi
bem baixa neste período), com vinhos produzidos em um estilo bem mais oxidativo
e até mesmo fortificado, algo que jamais foi permitido mas, diz-se, era
praticado em tempos de comunismo. A virada qualitativa vem a partir de 1989,
quando a Hungria abre-se para investimentos externos e, devido a sua fama,
Tokaj é a primeira região a atrair interesse, com a Royal Tokaj, à qual
seguiram-se muitas outras que foram renovadas e/ou modernizadas, fosse com
capital estrangeiro ou local, entre as quais podemos citar a Oremus (do grupo
Vega Sicilia), Disznókő, do grupo francês AXA, e o produtor local István Szepsy.
Ainda que os vinhos doces sejam os mais famosos, vinhos
secos também são produzidos aqui, aliás com enorme importância para a economia
da região. Estes entram na categoria Szamorodni száraz, vinhos que
tradicionalmente eram obtidos com cachos colhidos inteiros, sem distinção entre
uvas saudáveis e botrytizadas, produzindo um mosto fermentado até o final,
deixando muito pouco ou nenhum açúcar residual. Mas a grande estrela local são,
de fato, os vinhos doces. Antes da safra 2013, utilizava-se uma classificação
algo mais detalhada, com vinhos doces Late Harvest, nos quais a botrytis, ainda
que usual, não era obrigatória, e com os vinhos doces Aszú, estes
necessariamente com botrytis, sendo seu nível de doçura medido em puttonyos, de
3 a 6. Um puttonyo é um tradicional balde de madeira, que comporta entre 20 e
25kg de uvas Aszú, que seria adicionado a um gönci, barrica de 136/137 litros
completada com vinho base seco, logo, quanto mais puttonyos, mais doce o vinho.
A partir de 2013 essa classificação deixou de ser utilizada,
com o objetivo de simplificar a compreensão por parte do consumidor. Hoje temos
os Tokaji Late Harvest e os Tokaji Aszú, sendo estes últimos obrigatoriamente
botrytizados e com um açúcar residual mínimo equivalente ao que antes era um
Tokaji 5 puttonyos. Mais simples e direto, não?
No topo, entre os mais raros e inebriantes vinhos doces do
mundo, encontraremos o especialíssimo Tokaji Eszencia. Este é produzido
unicamente com o mosto flor de uvas botrytizadas, com níveis elevadíssimos de
doçura e acidez, o que faz que sua fermentação possa levar anos para chegar,
quando muito, em um teor alcoólico por volta dos 5°. São vinhos que precisam
ter um mínimo de 450g/l de açúcar residual, embora exemplares na casa dos
800g/l não sejam incomuns; vinhos para beber em pequenos goles, impressionando
permanentemente a memória.
O caráter da botrytis é marcado nos vinhos de Tokaji como
nos de Sauternes, mas estes têm, em geral maior acidez do que os franceses, o
que os torna menos enjoativos e mais gastronômicos. Essa característica é
partilhada com os Trockenbeerenauslese alemães, com a vantagem de que a
produção de Tokaji e mais estável, permitindo que estes tenham preços mais
acessíveis que aqueles. Por isso, Tokaji ocupa uma posição privilegiada entre
os principais clássicos obtidos a partir da podridão nobre, merecendo integrar
sempre a seleção do escanção moderno.