sexta-feira, 22 de maio de 2020

Tokaj - Revista Escanção


Hungria e os Vinhos de Tokaj
Neste espaço que já há muitas edições temos falado sobre países e regiões produtoras do Novo Mundo, voltamos agora à Europa; uma Europa de tradições seculares mas que permaneceu em segundo plano ao longo do séc. XX, voltando a receber a devida atenção e destaque após a queda do Muro de Berlim.
O centro de nossa conversa hoje é a tradicional região de Tokaj-Hegyalja, renomada pelos vinhos doces Tokaji ali produzidos, os mais antigos vinhos feitos a partir de uvas atingidas pela podridão nobre, pré-datando em um século os exemplares similares do Reno.
Porém, antes cabe um, importante, parêntese. A Hungria vai muito além do Tokaji! É um país produtor que merece toda nossa atenção, pela sua história, variedade e qualidade dos vinhos ali produzidos. A Hungria tem um sistema de DOCs, alinhado com a legislação da União Europeia, designado OEM, Oltalom alatt álló Eredt Megjelöléssel, com regiões demarcadas por todo o país, fazendo bom uso não apenas de castas internacionais ali bem aclimatadas, mas sobretudo de sua rica coleção de castas locais, como as tintas Kékfrankos e Kadarka ou as brancas Ezerjó e Leányka. Das muitas regiões demarcadas, cabe destacar como zonas de especial interesse Villány, no sul do país e de grande renome internacional, Sopron, praticamente uma continuação da região austríaca de Burgenland, e Eger, à meio caminho entre Budapeste e Tokaj, onde produz-se o tinto Bikavér (sangue de touro), com lendas de sua origem remontando ao séc. XVI.
Mas, ainda que a qualidade destes vinhos e de tantos outros seja superior, é inegável que o mais conhecido de todos os vinhos húngaros é, de fato, o Tokaji. Aqui já cabe a primeira distinção; Tokaj Wine Region é como eles se referem a região produtora, que fica dentro da região de Tokaj-Hegyalja, sendo a vila de Tokaj sua principal cidade, enquanto o vinho ali produzido é o Tokaji, com registros de sua produção desde o séc. XVII, com a primeira demarcação da região de produção feita em 1703, antecedendo ao Porto em mais de 50 anos, porém sem uma regulamentação das normas de produção, ponto no qual o pioneirismo cabe a Portugal.
Tokaj fica no Nordeste da Hungria, na fronteira com a Eslováquia, aliás, parte da região originalmente demarcada está em território eslovaco, sendo permitida também a produção de vinho Tokaji naquele país. As encostas dos montes Zemplén definem a geografia local, bem como tem crucial importância na composição dos solos, estes de origem vulcânica, de diferentes eras geológicas, conferindo variedade aos vinhedos locais. O Monte Kopasz, ao norte da vila de Tokaj, marca o relevo da região, com os vinhedos localizados principalmente em suas encostas, em um formato de V, com orientações sudeste-sul-sudoeste.
Além destes aspectos, outro ponto fundamental para a produção destes vinhos são os dois cursos d’água, o Bodrog (mais importante) e o Tisza, que convergem no sul da montanha. Daqui nascem as névoas matinais que recobrem os vinhedos no princípio do outono, fornecendo a umidade necessária ao desenvolvimento da botrytis. A principal uva da região é a Furmint, cerca de 70% dos vinhedos, valorizada por sua marcante acidez, além da casca fina, que a torna altamente suscetível a podridão nobre. Esta é complementada pela Hárslevelű e, em pequena quantidade, pela Moscatel, aqui chamada Sárgamuskotály, além de volumes muito pequenos das variedades locais Zeta, Kabar eKövérszőlő.
Sua rica história, com vinhos apreciados e procurados nas cortes europeias dos séculos XVIII e XIX, Tokaji foi um dos poucos, senão o único, vinho do Leste Europeu que manteve algum interesse demanda nos mercados ocidentais mesmo durante o período de influência soviética, porem não sem algum prejuízo, pois não havia então o mesmo cuidado e primor técnico destinado hoje a estes vinhos, sendo valorizado o volume em detrimento da qualidade (que foi bem baixa neste período), com vinhos produzidos em um estilo bem mais oxidativo e até mesmo fortificado, algo que jamais foi permitido mas, diz-se, era praticado em tempos de comunismo. A virada qualitativa vem a partir de 1989, quando a Hungria abre-se para investimentos externos e, devido a sua fama, Tokaj é a primeira região a atrair interesse, com a Royal Tokaj, à qual seguiram-se muitas outras que foram renovadas e/ou modernizadas, fosse com capital estrangeiro ou local, entre as quais podemos citar a Oremus (do grupo Vega Sicilia), Disznókő, do grupo francês AXA, e o produtor local István Szepsy.
Ainda que os vinhos doces sejam os mais famosos, vinhos secos também são produzidos aqui, aliás com enorme importância para a economia da região. Estes entram na categoria Szamorodni száraz, vinhos que tradicionalmente eram obtidos com cachos colhidos inteiros, sem distinção entre uvas saudáveis e botrytizadas, produzindo um mosto fermentado até o final, deixando muito pouco ou nenhum açúcar residual. Mas a grande estrela local são, de fato, os vinhos doces. Antes da safra 2013, utilizava-se uma classificação algo mais detalhada, com vinhos doces Late Harvest, nos quais a botrytis, ainda que usual, não era obrigatória, e com os vinhos doces Aszú, estes necessariamente com botrytis, sendo seu nível de doçura medido em puttonyos, de 3 a 6. Um puttonyo é um tradicional balde de madeira, que comporta entre 20 e 25kg de uvas Aszú, que seria adicionado a um gönci, barrica de 136/137 litros completada com vinho base seco, logo, quanto mais puttonyos, mais doce o vinho.
A partir de 2013 essa classificação deixou de ser utilizada, com o objetivo de simplificar a compreensão por parte do consumidor. Hoje temos os Tokaji Late Harvest e os Tokaji Aszú, sendo estes últimos obrigatoriamente botrytizados e com um açúcar residual mínimo equivalente ao que antes era um Tokaji 5 puttonyos. Mais simples e direto, não?
No topo, entre os mais raros e inebriantes vinhos doces do mundo, encontraremos o especialíssimo Tokaji Eszencia. Este é produzido unicamente com o mosto flor de uvas botrytizadas, com níveis elevadíssimos de doçura e acidez, o que faz que sua fermentação possa levar anos para chegar, quando muito, em um teor alcoólico por volta dos 5°. São vinhos que precisam ter um mínimo de 450g/l de açúcar residual, embora exemplares na casa dos 800g/l não sejam incomuns; vinhos para beber em pequenos goles, impressionando permanentemente a memória.
O caráter da botrytis é marcado nos vinhos de Tokaji como nos de Sauternes, mas estes têm, em geral maior acidez do que os franceses, o que os torna menos enjoativos e mais gastronômicos. Essa característica é partilhada com os Trockenbeerenauslese alemães, com a vantagem de que a produção de Tokaji e mais estável, permitindo que estes tenham preços mais acessíveis que aqueles. Por isso, Tokaji ocupa uma posição privilegiada entre os principais clássicos obtidos a partir da podridão nobre, merecendo integrar sempre a seleção do escanção moderno.

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