sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Ao Encontro do Novo - Escanção

 

Ao Encontro Do Novo

Ao longos dos últimos anos, temos sempre ocupado este espaço com diferentes regiões produtoras pelo mundo, sempre apresentando aos leitores novas fronteiras ou ainda zonas de produção já tradicionais porém menos conhecidas. Parte do que fascina no mundo do vinho é sua profundeza aparentemente sem fim, onde encontramos sempre novos temas e novas nuances.

O vinho sempre traz consigo novas descobertas, seja de aromas, sabores, sensações ou ainda de técnicas, histórias e informações. Desta forma, conhecer uma nova zona produtora é sempre uma aventura de descoberta e aprendizado.

Cada região tem sua história a ser contada; no Velho Mundo, via de regra, histórias de tempos já perdidos na memória, onde fatos, lendas e tradições combinam-se em um emaranhado onde nunca está claro onde começa uma coisa e termina outra, de forma que simplesmente aceita-se os fatos como estes são contados. No Novo Mundo, a história está um pouco mais bem documentada, por ser mais recente, então temos contos de pioneiros e desbravadores, mas ainda assim com um justa dose de distanciamento histórico.

Pois outra coisa fascinante no mundo do vinho é que ele não se encerra em suas linhas, como se estas estivessem já traçadas e delimitadas, novas fronteiras são sempre traçadas por aqueles que buscam novas formas e novos caminhos na produção de bons vinhos. Aqui no Novo Mundo, muito mais do que no Velho, estes limites são borrados, com novas regiões surgindo a cada dia, muitas vezes onde antes jamais se imaginaria que haveria um dia a produção de vinhos, quanto mais de vinhos de qualidade.

Uma rara oportunidade no mundo do vinho e poder vislumbrar o momento preciso em que uma nova linha é traçada, em que uma nova fronteira é desbravada. Essa rara oportunidade tive há pouco, visitando e entendendo melhor um novo terroir que começa a se desenhar aqui pelo Brasil.

Antes de mais nada já me adianto com o fato que tenho plena consciência que, para grande parte do mundo, o Brasil enquanto produtor não é um país de grande destaque, logo as sutilezas de nossas regiões produtoras não são exatamente o tema de maior interesse do escanção português. Mas esse não é o tema central dessa conversa e sim o nascimento de um novo terroir!

Estive há poucos dias na Chapada Diamantina, região localizada no interior do estado da Bahia, a cerca de 400km de sua capital, Salvador, no paralelo 13, bem acima do “limite” mágico da vitivinicultura, o paralelo 30. Ali encontrei uma região já de agricultura bem desenvolvida, com uma combinação de terrenos férteis com alta tecnologia e clima propício, onde plantações dividem espaço com paisagens naturais de tirar o fôlego.

No passado, por tratar-se de zona distante do litoral e de grandes centros urbanos, o que atraiu e incentivou a ocupação da região foi o garimpo, com extração principalmente de diamantes. Foi apenas nas últimas décadas que o potencial da região para a agricultura foi descoberto e é aqui que de certa forma começa a se desenhar a história recente do vinho ali.

Ainda que encontremos aqui culturas como a batata e a criação de gado, vicejaram também produtos como berries em geral, normalmente ligados à climas mais frescos, e cafés de alta qualidade, com grande produção orgânica e mesmo biodinâmica. Ocorre que mesmo tão próximo assim da linha do Equador e das regiões semiáridas do interior do Brasil, a Chapada conta com a altitude, acima dos 1.000 msnm, o que proporciona uma boa parte do ano com temperaturas baixas na noite, além de dias longos, ensolarados e secos.

E é dessa percepção que surgem os, até agora, três projetos de produção de vinhos ali existentes. Um deles, localizado no município de Mucugê, caminha para ser o mais emblemático dessa nascente região.

Quando lhes digo que temos aqui uma região nascente, quase embrionária, falo sério! O projeto em questão, a Vinícola Uvva, tem início com a implantação de vinhedos experimentais em apenas em 2012, já chegando hoje aos 52ha e seus vinhos só começarão a ser comercializados em alguns meses. A família proprietária já produz batatas, café e cria gado, com grande sucesso nos mercados interno e externo, mas percebeu em determinado momento que ali havia o potencial para algo mais.

O Brasil já tem a experiência da produção de vinhos na região Nordeste, inclusive com investimento português, no Vale do São Francisco, entre os estados da Bahia e de Pernambuco, onde o calor, o clima seco e a irrigação permitem o cultivo contínuo, com cinco colheitas a cada dois anos, mas na Chapada a busca foi por outro padrão de qualidade e fez-se aqui uma opção diferente.

Os vinhedos da zona utilizam um método já usual em outras áreas do Brasil, que é a dupla poda. Essa técnica recorre a uma poda agressiva no mês de janeiro, quando a videira está no momento da produção, forçando assim a produção e a colheita no nosso inverno, entre Junho e Agosto. No caso da Chapada Diamantina, justamente nesse época haverá condições propícias a produção de uvas de alta qualidade e com excelente sanidade, com dias quente e ensolarados, tempo seco e noites frias, com amplitudes térmicas que podem facilmente superar os 15° C de variação entre dia e noite.

Eu, já chegando em meus 20 anos de profissão, jamais esperaria encontrar ali a qualidade que encontrei. O fato é que uma série de condições orográficas criam um terroir muito especial, com solos de arenito profundos e de boa drenagem, muito luminosidade e proteção de ventos mais úmidos que podem chegar vindos do Atlântico. Todos os vinhos que provei, ainda que produzidos em uma adega com a mais alta tecnologia, eram vinhos sem intervenção além do básico, o uso de leveduras selecionadas e o controle de temperatura na fermentação. Aqui não há necessidade de correções, seja de acidez, de açúcar no mosto ou o que quer que seja.

Provei vinhos com álcool comedido, na casa dos 13° ABV, com acidez fresca e suculenta, taninos finos, equilibrados e persistentes, com especial destaque para as castas bordalesas, sobretudo a Cabernet Sauvignon e a Petit Verdot. Ainda que sejam os vinhos de um único produtor, a abordagem enológica de respeito ao que a natureza oferece me trazem o vislumbre do potencial dessa zona como um todo.

Das muitas experiências que essa profissão me proporcionou, presenciar os primeiros passos de uma promissora região produtora é algo verdadeiramente especial, que só reforça em mim o espírito de atenção que, acredito eu, deve estar sempre presente em todo escanção, a justa consciência que não importa o quanto conheçamos, sempre haverá o novo ali após dobrarmos a esquina. Hoje, no Brasil, o novo está na Chapada Diamantina.

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Índia - Escanção

 O Antigo Torna-se Novo

As fronteiras do mundo do vinho expandem-se a cada dia, abarcando novas regiões, estilos e castas. Mas o novo nem sempre é assim tão novo; há no Novo Mundo do vinho nações de tradições milenares, mas que apenas em tempos recentes reencontraram o caminho de suas já antigas tradições vitivinícolas.

Nosso destino de hoje é um destes, uma cultura milenar, riquíssima em história, aromas e sabores, inclusive no vinho, mas que só em tempos muito recentes veio juntar-se em sério aos países produtores; hoje vamos à Índia.

O registro objetivo de produção de vinhos no subcontinente está em tratados de medicina escritos entre os séculos XIII e XII a.C. nos quais são elogiadas as propriedades medicinais de vinhos produzidos em solo indiano. Ainda mais antigos são menções em livros sagrados do Hinduísmo, alguns datando de mais de 5.000 mil anos atrás. Porém foi apenas a partir da chegada dos invasores Persas, por volta do ano 1300 da era cristã, que se iniciou algum nível de produção em larga escala.

Porém mesmo com essa história tão antiga ainda assim elencamos hoje em dia a Índia entre os países do Novo Mundo. Por qual razão? O fato é que, seja por motivos religiosos, políticos, culturais e/ou econômicos, por séculos a vitivinicultura na Índia foi negligenciada. Chegamos ao fim do século XX com um enorme mercado ainda virgem, com produção importante de bebidas alcoólicas de baixa qualidade e baixo custo, inclusive vinhos baseados sobretudo em uvas americanas.

Somente no início da década de 1980 é que começa a ganhar força na Índia uma classe média economicamente relevante, com hábitos de consumo e estilo de vida ocidentalizados. Surgem então as primeiras iniciativas daquilo que é hoje a indústria do vinho indiana, com a fundação da Indage Vintners, em Pune, Maharashtra e Grover Zampa Vineyards, em Nandi Hills, Karnataka.

Estes dois são, aliás, o coração da indústria e os principais mercados consumidores do país. A Índia é um país de grandes dimensões territoriais, com uma população gigantesca e uma complexa organização social e política. Desta forma, os estados que compõem o país têm algum nível de autonomia na definição de suas legislações, o que torna a produção, venda e consumo de bebidas mais complexa em alguns lugares do que em outros.

Os grandes estados de Maharashtra e Karnataka, assim como a antiga colônia portuguesa de Goa, contam com incentivos e normas claras para produção, além de um ordenamento jurídico um pouco menos pesado para a venda em consumo, o que permitiu um crescimento acelerado do mercado nos primeiros anos do século XXI.

As principais regiões produtoras são Bijapur e Nandi Hills, em Karnataka, e Solapur e Nashik Valley, em Maharashtra, sendo Nashik Valley a mais importante e mais comentada, com cerca de 60% de toda a produção nacional. Além dos volumes produzidos esse sucesso também se deve, em grande parte, a presença aqui da maior vinícola indiana, Sula Vineyards, fundada em meados dos anos 1990 por Rajeev Samant, depois de uma temporada de estudos e trabalho no Silicon Valley, na Califórnia. Sula hoje é a maior referência do vinho indiano, com cerca de metade de toda a produção local e foco em uvas viníferas.

As castas mais cultivadas são as francesas, influência fundamentalmente dos muitos consultores aos quais recorreu-se nas primeiras décadas, entre os quais o francês Michel Roland, responsável ou corresponsável por vinhos nos cinco continentes. Destacam-se as brancas Chenin Blanc e Sauvignon Blanc e as tintas Syrah, Cabernet Sauvignon, Zinfandel e Merlot. Uma particularidade local é que o clima não permite que as videiras entrem em dormência, o que torna necessário duas podas extras, a fim de garantir um produção de melhor qualidade e no melhor período do ano, entre março e abril, quando tem-se pouca ou nenhum chuva e temperaturas oscilando dos 35° aos 15°C entre dia e noite.

A qualidade da produção local vem subindo a passos largos, entregando vinhos com tipicidade varietal, fato exemplificado pelo uso, por parte da ASI, de um Chenin Blanc indiano na prova final de degustação às cegas do Mundial de Sommeliers de 2013, varietal que foi corretamente identificado pelo campeão, Paolo Basso.

Soma-se a isso o aumento no número de pequenos produtores, ciosos da qualidade de seus vinhos e sempre em busca de melhorias. Entre os hoje pouco mais de 50 produtores encontraremos também importantes investimentos estrangeiros, de grupos como Pernod Ricard, Diageo e Möet-Henessy, que estão de olho não só no florescente mercado global, mas também na crescente busca do consumidor por vinhos de bom custo e com diferenciais importantes, sendo aqui o exotismo o principal.

Da mesma forma que produtores pelo mundo não podem ignorar o potencial da Índia como mercado consumidor, com a maior população jovem do planeta, também cabe ao escanção moderno estar atento aos vinhos ali produzidos e como estes impactarão o mercado global no futuro próximo.


quarta-feira, 12 de maio de 2021

Croácia - Escanção

 

O sempre crescente interesse do consumidor por novos vinhos, novas castas, novas origens e mais, já há muito tem sido o motor da expansão das fronteiras do mundo do vinho. Especialmente nos últimos 30 ou 40 anos vimos a emergência de novos e mais bem informados bebedores, interessados em melhor conhecer a origem e história daquilo que têm no copo.

Assim, de forma natural, o storytelling de um vinho passou a ser algo cada vez mais importante para a construção das marcas, o que acabou por dar espaço a categorias antes virtualmente inexistentes, do ponto de vista comercial, como os vinhos naturais, biodinâmicos e veganos, ou ainda vinhos de países antes pouco presentes nas prateleiras ocidentais.

Nesta última categoria, vêm marcar seu espaço os vinhos do Leste Europeu, de países que até o início dos anos 1990 estavam do lado de lá da Cortina de Ferro, com governos comunistas ditatoriais sob influência direta da então União Soviética. Dentro da lógica de controle centralizado do governo Soviético, não tão diferente do que ocorreu em Portugal durante os anos de Salazar, a produção da maioria destes países foi reorganizada, em sistema de cooperativas, com foco no volume em detrimento da qualidade.

Desta forma, foi apenas a partir da queda do Muro de Berlim e do fim da URSS é que a produção destes países voltou a se organizar, na medida em que estas nações passaram a ter maior acesso aos mercados internacionais, conquistando consumidores, em um primeiro momento, pelo exotismo de seus vinhos, feitos com castas autóctones desconhecidas, ou em regiões obscuras, ou ambos.

Posição privilegiada na conquista destes novos consumidores acabou sendo ocupada pelo Croácia, parte da antiga Iugoslávia, fundamentalmente por uma série de laços de sua história vitivinícola com a Itália, logo do outra lado do Mar Adriático; a costa croata foi parte do território Veneziano no passado e o interior do país é tradicional fornecedor de carvalho para os botti tão utilizados na produção de vinhos do país da bota.

Hoje a Croácia é um destino turístico dos mais disputados, com belezas naturais estonteantes e uma coleção de cidadezinhas pitorescas. Neste cenário, o vinho do país também conquista mais adeptos a cada dia. Podemos grosseiramente dividir o território nacional em dois; as áreas costeiras, à oestes dos Alpes Dináricos, e a Croácia continental, com produção de vinhos em zonas mais ao Nordeste. Oficialmente, desde 2018 temos 4 regiões produtoras, duas no interior (Bregovita Hrvatska e Slavoniji i Podunavlje) e duas no litoral (Istra i Kvarner e Dalmacija).

No interior temos já um importante laço com o restante do mundo do vinho, já mencionado. Vem da Eslavônia o carvalho tão valorizado na produção de barricas, especialmente tonéis e pipas. Aliás, não é incomum a tradução equivocada de muitas publicações e sites para o português, que trocas Eslavônia por Eslovênia, fato ao qual há de se estar sempre atento; recipientes de carvalho são feitos com madeira da Eslavônia. A produção de vinhos aqui no interior está concentrada em áreas mais próximas às fronteiras com Hungria e Eslovênia, não sendo a região de maior destaque, ainda que produza vinhos interessantes a partir de castas internacionais e locais. Talvez o maior destaque aqui seja a casta branca Graševina, mais conhecida como Welschriesling ou Riesling Itálico, apesar de não ter qualquer parentesco com a Riesling. O destaque é mais pela ampla difusão dessa casta por outros países da região, bem como pelo Brasil, e por tratar-se da casta mais cultivada em todo o país.

No mais, os vinhos do interior reúnem uma ampla coleção de castas locais e internacionais, em uma variedade de estilos, em geral com maior foco nos exemplares de boa relação custo/benefício.

Já nas zonas costeiras é que encontraremos a regiões de maior destaque, bem como as castas mais reconhecidas internacionalmente, as castas locais, que fique claro. Nessa parte do país encontraremos com maior frequência uvas autóctones que são inclusive reconhecidas fora das fronteiras croatas. Entre estas a mais popular é a tinta Crljenak Kaštelanski, também conhecida como Tribidrag.

Certamente você já leu sobre essa casta croata e há uma grande chance que você inclusive já tenha provado vinhos feitos com ela e não se impressione se você não se recorda. O mais provável é que você a conheça por outro nomes. Essa casta de nome quase impronunciável é nada mais nada menos que a Zinfandel californiana, também cultivada na região italiana da Puglia, como Primitivo.

Durante décadas considerada uma casta autóctone californiana, pesquisas da UC Davis determinaram que era geneticamente a mesma Primitivo italiana e mais alguns anos de pesquisa levaram a identificação de sua origem croata. Aqui na Croácia a tinta que recebia maior atenção era a Plavac Mali, que se chegou a suspeitar seria a Zinfandel mas hoje sabe-se ser um cruzamento entre esta e a também autóctone Pošip. Apenas após essa descoberta é que essa tinta, até então relegada ao segundo plano e cultivada em pequenas quantidades no interior do país, voltou a crescer e vem entregando belos exemplares.

Ao longo da costa, da Ístria até o sul da Dalmácia, o litoral recortado e cheio de ilhas entrega uma variedade de solos e microclimas, que combinados com as diferentes tradições locais geram uma miríade de vinhos a serem descobertos, desde brancos frescos e aromáticos, passando por tintos cheios de caráter, até vinhos laranja, de longa maceração pelicular e maturados não em carvalho mas em acácia. Ou seja, vinhos para todos os gostos, ocasiões e gastronomias.

Dos mais interessantes países produtores que vem ganhando destaque globalmente, merecedor da atenção de consumidores e escanções.

domingo, 7 de março de 2021

Jerez - Escanção

 

Não se nega a primazia de Portugal como terra de grandes vinhos generosos. Com o trio formado por Porto, Madeira e Moscatel de Setúbal, de grande fama por todo o Mundo, ainda complementados por generosos raros, especiais e regionais, como o Carcavelos, o Moscatel do Douro ou outros tantos mais.

Ainda que tais vinhos tenham surgido a partir de tradições mais antigas e locais, é a grande sede dos britânicos por esta categoria que dá o grande impulso necessário para que estas e ainda outras denominações de firmem como referência de vinhos generosos de qualidade para o grande público amante do vinho. Em Portugal, as apelações supracitadas foram as que maior influência sofreram, fato facilmente constado pela ainda expressiva penetração destes vinhos no mercado britânico, além das muitas famílias vindas de lá e hoje profundamente envolvidas com o negócio do vinho em Portugal.

Mas entre os grandes vinhos generosos do mundo encontramos um em particular com história e tradições tão ricas quanto os exemplares clássicos lusitanos, produzido há poucas centenas de quilômetros de Portugal, nas cálidas terras andaluzes; são estes os vinhos de Jerez!

A apelação reconhece o nome em diferentes idiomas, Jerez, Xerez ou Sherry. Aqui utilizaremos o nome local, em respeito à região e suas tradições. O Jerez é fruto de uma terra de passagem, onde muitos foram os povos que ao longo da história ali habitaram. As tradições, gastronomia, arquitetura e viticultura locais são, então, fruto direto da influência de Fenícios, Gregos, Cartagineses, Romanos, Muçulmanos, entre outros.

Porém, os vinhos ali produzidos e tão apreciados hoje em dia sofreram uma significativa influência das necessidades do mercado, especialmente o mercado britânico e sua demanda por vinhos fortificados. Este aliás era o estilo local já nos séculos XVII e XVIII, com vinhos jovens e de elevado teor alcoólico, cujo envelhecimento antes da exportação não era permitido. É apenas no início do século XIX que começa a tomar forma a Jerez que conhecemos hoje, quando a chegada de várias famílias de comerciantes estrangeiros e de outras regiões de Espanha levam a mudanças nas normas locais, que por fim levam a produção de vinhos de maior qualidade.

Hoje, ainda que Jerez produza vinhos de grande qualidade em estilo oxidativo, o grande fator distintivo da enologia local são os vinhos de envelhecimento biológico, que maturam e evoluem sob influência da flor, uma camada de leveduras que se formam sobre o vinho, não tão diferente do que acontece com os Vin Jeaune do Jura, na França. Aqui nos solos esbranquiçados ricos em calcário, chamados albarizas, a casta branca Palomino Fino produz vinhos com as condições ideais para que estas leveduras se desenvolvam.

Claro, é necessário o “apoio” do produtor; a fortificação dos vinhos base não pode ultrapassar os 15,5° e as botas, barris onde o vinho envelhece, não podem ser completamente cheias, deixando espaço para a formação da camada de flor. A flor bloqueia a entrada de oxigênio, consome qualquer resquício de açúcar ainda presente, glicerina e produz uma série de substâncias químicas do grupo dos acetaldeídos, conferindo a estes vinhos seus aromas típicos de amêndoas e notas salinas.

O vinho produzido deste forma é o Jerez Fino, podendo também ser denominado Manzanilla caso seu envelhecimento aconteça na cidade de Sanlúcar de Barrameda, mais próxima ao mar, na foz do rio Guadalquivir. Para que tenha as características de delicadeza e frescor que lhe são peculiares, a origem ideal são os solos de albariza que já mencionamos. Essa distinção é importante, pois temos ainda na região solos arenosos e argilosos, as arenas e barros, que entregam vinhos com mais corpo e estrutura, mais adequados para os estilos com maior oxidação e mais álcool, o Oloroso e o Amontillado. Aquele é feito com vinhos base fortificados à 18°, evoluindo desde o início de forma oxidativa, enquanto este inicia sua maturação sob a flor, sendo após alguns anos refortificado para que a flor morra e siga sua maturação de forma oxidativa.

Outra prática distintiva da produção de Jerez é o uso quase que generalizado do sistema de solera, que basicamente consiste em nunca esvaziar as barricas no momento do envase, completando as mesmas com barricas um ano mais jovens, e estas com vinhos de barricas ainda um ano mais jovens e assim sucessivamente, até que se complete as barricas que contêm apenas vinho do ano anterior com o vinho do ano atual. Desta forma, o vinho engarrafado é sempre uma mistura de todas as safras desde o início daquela solera, o que confere maior complexidade ao produto, mas também constância de estilo e qualidade.

Encontramos ainda outros estilos menos conhecidos, de produção limitada, como a Manzanilla Pasada e o Palo Cortado, além dos estilos doces, com a casta Pedro Ximenez, carinhosamente chamada de PX, ou com a Moscatel, bem menos comum. Serão vinhos igualmente instigantes, complexos e apaixonantes.

Jerez é uma região muito rica em história e tradições e além disso produz um dos mais instigantes vinhos, com uma versatilidade ímpar para harmonização rivalizada por pouquíssimas regiões ou estilos. Conhecer a fundo esta região e seus vinhos é um caminho sem volta, seja pelo lado do escanção, que invariavelmente mergulha nos meandros dos muitos estilos e sabores que aqui encontram-se, seja pelo lado do consumidor, que terá uma fonte de muitos sabores, sensações e possibilidades.

 

 

domingo, 24 de janeiro de 2021

Valtellina Escanção

 

Valtelinna e a Sutileza do Nebbiolo Alpino

Muito já se disse, e ainda se diz, da enorme variedade de castas e regiões produtoras que encontramos na Itália. Em uma nação com mais de 300 espécies de uvas autóctones e mais de 400 regiões demarcadas, onde a variedade e a autenticidade são as palavras de ordem, é nada menos que um grande atestado de qualidade que uma casta específica venha a se destacar e ganhar espaço nas adegas mundo afora.

Nesta coleção de muitos nomes e muitas cores, é significativa a posição de grande destaque ocupada por um casta em particular, a Nebbiolo, nobre variedade do Piemonte tida por muitos, inclusive por este escriba, como incontestavelmente a maior entre as castas autóctones italianas, produzindo vinhos de elegância ímpar, potência, sutileza, complexidade e longevidade.

Sendo uma variedade exigente, são poucas as zonas demarcadas que tem a Nebbiolo como sua casta principal e destas as que são consideradas a máxima expressão do varietal são sem dúvida Barolo e Barbaresco, localizadas no Langhe, às margens do rio Tanaro, onde as colinas de orientação sul e o solo argilo-calcario oferecem as condições ideais para a perfeita maturação e pleno desenvolvimento de aromas e sabores.

No entanto, há ainda um outro Nebbiolo de alta classe a ser descoberto, um aliás que reúne um conjunto particular de características que o fazem absolutamente peculiar. Nos referimos aqui a Valtellina, a região demarcada mais ao norte da Itália, já na fronteira com a Suíça, em meio aos Alpes.

A Valtelinna reúne uma séria de características que a tornam única. O primeiro e talvez mais destacado ponto é que a casta aqui é a Nebbiolo, localmente chamada Chiavennasca e reconhecida por ser uma variedade de maturação difícil, mas que produz excelentes vinhos em meio aos Alpes, onde menos se espera que ela alcance os melhores resultados.

Tal feito é alcançado por uma combinação única de fatores. A região está localizada em um vale formado pelo rio Adda, correndo no sentido Leste-Oeste. O vale fica entre os montes alpinos Retiche, ao Norte, e Orobie, al Sul, que bloqueiam ventos frios que possam vir de ambas as direções. Além disso temos a breva, brisa quente originaria do lago di Como que sobra durante boa parte da primavera e por todo o verão, ajudando a manter temperaturas mais elevadas bem como evitar doenças fúngicas causadas pela humidade.

Outro ponto é a localização dos vinhedos, na margem Norte do rio, em encostas íngremes de orientação Sul, em patamares não muito distintos daqueles que encontramos no Douro. Assim, contam as videiras com a melhor exposição solar possível, além do acúmulo de calor pelas pedras das quais são feitos os patamares, calor este que será dissipado após o por do sol mantendo a temperatura um pouco mais alta e favorecendo a maturação dos bagos de Nebbiolo.

A particularidade desta paisagem cultivada desde há muitos séculos atingiu seu ápice no século XIX, com mais de 6.000ha, dos quais hoje restam cerca de 850ha espalhados por mais de 2.500 Km de terraços, naquela que é a maior área deste tipo em toda Itália. Esta riqueza histórica, geográfica e paisagística faz da Valtellina candidata ao status de patrimônio da humanidade pela UNESCO, outro ponto de semelhança com o Douro vinhateiro.

Aqui encontramos vinhos de 4 distintas denominações. A IGT Alpi Retiche, a DOC Valtellina e as duas de maior destaque e qualidade, as DOCGs Valtellina Superiore e Sforzato di Valtellina (Sfursat). Os vinhos de maior destaque e qualidade são os produzidos nas duas DOCGs, que contam com as subzonas de Maroggia (a menor, com apenas 24ha), Sassella (vinhos de grande elegância), Grumello (vinhos macios e longevos), Inferno (austeros e estruturados) e Valgella (os mais simples e diretos). Apenas uvas destas subzonas podem ser utilizadas para o Valtellina Superiore, mas uvas de toda a zona podem ser utilizadas na DOCG Sforzato di Valtellina.

O Sforzato (Sfursat no dialeto local) é provavelmente o produto de mais renome, devido a particularidades de sua produção, que estão de certa forma ligadas ao clima limítrofe da região. O Sforzato é feito com uvas de colheita o mais tardia possível, que posteriormente ainda passam por um período de appassimento de várias semanas antes da vinificação. Grosso modo, trata-se de processo semelhante ao de produção de Amarone della Valpolicella, que entrega um vinho com maior corpo, estrutura e álcool, além de aromas de frutos mais doces e maduros. São vinhos secos, de grande profundidade e complexidade, exemplos ímpares daquilo que os italianos chamam de vinhos de meditação.

Pois não bastassem todos estes aspectos, que já fazem da Valtellina uma zona única e destacada, encontramos aqui mais uma particularidade; trata-se de uma rara situação em que o vinho cruza as fronteiras nacionais. Devido a proximidade com a fronteira Suíça, país onde muitos dos produtores locais vivem, a normas permitem o engarrafamento em território suíço, recebendo então a menção Stagafassli.

O resumo é que não são poucos os aspectos distintivos desta zona não tão conhecida, sendo indiscutivelmente o principal deles a elevada qualidade. Motivos de sobra para despertar o interesse do escanção moderno.

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