segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Barolo - Escanção

 

Barolo, Onde o Tempo se Faz Vinho

 

Há regiões que estudamos. Outras que admiramos. E há aquelas às quais retornamos, não necessariamente no mapa, mas na memória, no paladar, no afeto. Barolo, para mim, pertence a esta última categoria. Ainda que sua fama seja hoje planetária, com rótulos disputados por colecionadores e pontuações elevadas, a verdade é que Barolo continua, essência adentro, um lugar íntimo. Um vinhedo de colinas, névoas e silêncios, onde o vinho não é apenas resultado de técnicas, mas de tempo e de uma certa delicadeza com que o produtor toca a terra.

Localizado no coração das Langhe, no Piemonte, Barolo é um território onde as paisagens parecem ter sido moldadas para que alguém, um dia, as descrevesse com devoção. As colinas onduladas, a alternância entre bosque, vila e vinhedo, e o inevitável manto de neblina outonal que inspirou o próprio nome da uva Nebbiolo formam um cenário que, mesmo antes da primeira taça, já provoca aquele aperto suave no peito de quem ali encontra significado.

A história da região, por sua vez, não é menos notável. Durante séculos, o Nebbiolo produziu vinhos doces ou semissecos, conforme o costume local e as limitações técnicas da época. Foi só no século XIX, com a influência de figuras como o Conde de Cavour e Giulietta Falletti, a Marquesa de Barolo, que o vinho adquiriu seu perfil moderno: seco, estruturado e capaz de evoluir por décadas. Uma transformação que exigiu paciência e visão, características que se tornariam, com o tempo, inseparáveis da identidade de Barolo.

E é preciso entender o terroir para compreender o vinho. As colinas da região apresentam dois grandes perfis de solo; Tortoniano, mais rico em argilas e calcário, resultando em Barolos mais delicados e aromáticos e Helvético, mais arenoso, pobre e compacto, dando origem a vinhos austeros, de taninos firmes e longevidade impressionante. Importante frisar que não são regras, muito mais indicativos de estilos, pois em um mosaico de terroirs como o daqui, não faltam vinhedos e produtores que contrariem essa “regra”.

Essa dualidade se reflete nas localidades que compõem a denominação: La Morra e Barolo tendem à elegância; Serralunga d’Alba e Monforte d’Alba evocam potência e estrutura; Castiglione Falletto equilibra os dois mundos. Não há uma única face de Barolo; há um conjunto de personalidades enquadradas por uma mesma uva.

Apenas uma uva, aliás: a Nebbiolo. Frágil ao clima, sensível ao vento, tardia na maturação, e extraordinariamente transparente ao lugar onde cresce. Em poucos sítios do mundo ela encontra voz tão clara quanto aqui. Não há maquiagem: nem tonal, nem aromática. O Nebbiolo exige do produtor domínio técnico, mas exige, sobretudo, respeito. E do apreciador, exige entrega, porque seus vinhos se revelam por camadas, nunca todas de uma vez. Há quem diga que Barolo ensina paciência e a julgar pelas garrafas que ainda repousam aqui na adega, talvez seja verdade.

Nos últimos anos, a famosa cisão entre “tradicionalistas” e “modernistas” ganhou contornos mais suaves. As extrações longas e as grandes botti convivem com tempos mais curtos de maceração e o uso criterioso de barriques. Hoje, a região parece compreender que a técnica é apenas a ferramenta; o protagonista é, e sempre será, o terroir. Há estilos distintos, mas o espírito permanece: permitir que cada parcela fale sua própria língua.

É também uma região onde a ideia de cru ganhou força, inspirada pela Borgonha, mas reinterpretada ao modo piemontês. Crus como Cannubi, Brunate, Bussia, Cerequio, Rocche dell’Annunziata e Monprivato, entre tantos outros, tornaram-se nomes familiares aos que seguem a trilha da Nebbiolo. Não são apenas colinas: são capítulos da história líquida de Barolo, mapeados e acolhidos pela legislação nas últimas décadas, na forma de MGAs, Menzione, Geografica Aggiuntiva.

E, ainda que toda essa análise seja necessária, há algo em Barolo que escapa ao estudo e se aproxima mais do sentir. Uma garrafa aberta transforma a noite. O perfume, de rosa, alcatrão, cereja em licor, bergamota, folhas secas, terra fria, traz consigo uma espécie de nostalgia antecipada: aquela impressão de que estamos diante de algo que já foi e, ao mesmo tempo, ainda será. É o vinho que parece carregar o próprio tempo em suspensão.

Para muitos, Barolo é um clássico a ser reverenciado. Para outros, é uma paixão. E para alguns, e aqui escrevo não como técnico, mas como alguém que o sente, Barolo é um lugar íntimo, um território que se visita pela memória tanto quanto pela geografia, onde cada taça diz mais do que apenas o que está no copo. Diz sobre quem fomos quando o provamos pela primeira vez. Diz sobre aquilo que reconhecemos na persistência de seus taninos, na paciência de sua guarda, na delicadeza com que envelhece e nos sentimentos que carregamos e expressamos em cada garrafa que abrimos. É por isso que Barolo não é apenas uma denominação de origem. É, muitas vezes, um acontecimento pessoal.

E cabe ao escanção, profissional, estudioso, apaixonado, não apenas compreender seus dados, seus solos, seus estilos, mas também a sua essência. Porque certos vinhos, como Barolo, não se explicam apenas compartilham-se.

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