De Clássicos a Redescobertas
A história moderna do vinho é uma na qual não faltam
contos de renascimento e redescoberta. Afinal, poucas coisas mexem mais com os
desejos e pensamentos de escanções e amantes do vinho tanto quanto a sensação
de encontrar algo tido como perdido, um vinho, uma uva, uma região, um
produtor, aos poucos esquecidos em favor de nomes que melhor se comunicam com o
grande público, gerando vendas, resultados e fama mais facilmente alcançáveis.
Não à toa hoje a variedade mais cultivada em todo o
mundo é a Cabernet Sauvignon, afinal trata-se de um nome facilmente reconhecido
pelo consumidor, o que faz dela uma aposta mais segura para o produtor ou para
a região neófita, carente de encontrar seu lugar ao sol em prateleiras cada vez
mais cheias de opções e oportunidades.
Mas embora este pareça ser um fenômeno recente, movido
pelo marketing bem azeitado e pela compreensão dos desejos e anseios dos consumidores,
mais prontamente atendidos nas urgências das mídias e dos dados, já não é de
hoje que tais (re)descobertas são parte da paisagem entre consumidores e
produtores. E justamente de um desses casos que falaremos hoje.
Hoje vamos à França, mais precisamente ao Sul, mais
precisamente ao Norte do Sul, vamos às encostas escarpadas no Rhône Norte,
berço do duo Syrah e Viognier, nas hoje reputadas e disputadas apelações de
Côte-Rôtie e Condrieu, uma ao lado da outra, quase que em uma sequência
geológica, onde sutis diferenças de relevo e solo implicam em castas e estilos
distintos mas tantas vezes complementares, resultando mesmo em vinhos de grande
classe e vistos como pináculos da expressão varietal de tais castas.
Em se tratando da Syrah, anda que o cultivo de uvas
nessa zona venha desde os romanos, temos aqui um local menos óbvio para o
cultivo de tintas; afinal os ventos frios que sopram do Norte tornam a
maturação adequada muitas vezes um desafio, bem mais complexo do que na
igualmente famosa colina de Hermitage, mais ao Sul. Porém entra em jogo o
relevo e a geologia locais. O próprio curso do rio Rhône, com uma marcada
mudança em sua orientação, criou ao longo das eras uma colina tão propícia
quanto desafiadora.
Propícia por sua orientação Sul-Sudeste, que combinada
com sua marcada inclinação garantem abundância de raios solares nos períodos
críticos para a maturação, além dos solos entre granito e xisto, que retém cada
grau do calor solar. Desafiadora justamente por aquilo que a torna propícia,
pois a inclinação marcada, chegando a 60º em alguns pontos, torna a
vitivinicultura uma atividade trabalhosa, quase artesanal, com a necessidade do
uso de trilhos e polias para a movimentação das mínimas cargas, como uma simples
caixa de uvas recém-colhidas.
Todas essas dificuldades fizeram da Côte-Rôtie uma
apelação menor, pouco explorada e pouco conhecida, onde os custos de produção
por pouco não eram equalizados pelos valores que as garrafas alcançavam no
mercado. Apenas 70ha eram plantados aqui no início dos anos 1970, naquela que
parecia fadada a ser apenas uma curiosidade vitivinícola, uma apelação
conhecida e apreciada por uma meia dúzia de curiosos aqui e acolá.
Mas como tantas vezes é o caso, a obstinação de alguns
dedicados produtores, combinados com a iniciativa visionária, trouxe atenção
aos vinhos da Côte-Rôtie, com o trabalho de Marcel Guigal, ainda hoje uma força
importante na região e grande responsável pela popularização dos vinhos nos
anos 1980, com suas três expressões da Côte-Rôtie, de vinhedos únicos, La
Landonne, La Mouline e La Turque, expressões únicas das sutilezas do terroir
local, com um estilo de maior extração, amaciados por um longo período em
barricas novas, que construíram a fama entre apreciadores e colecionadores. E
antes mesmo da expressão de vinhedos únicos, há ainda uma expressão necessária
de duas grandes macrozonas aqui, duas côtes, a côte blonde, de solos mais
claros e com algo de calcário, entregando vinhos mais perfumados e acessíveis,
em contraste com a côte brune, com solos escuros e pesados, de xisto e argila,
dando origem a vinhos estruturados e densos, de longa guarda.
Seguindo um pouco mais ao Sul, na continuação da
Côte-Rôtie, está Condrieu, apelação por excelência da branca Viognier, que pode
inclusive ser utilizada em até 20% (mas raramente chegando a mais do que 5 ou
10%) nos tintos da Côte-Rôtie, desde que seja co-plantada e co-fermentada. Mais
ainda do que os tintos vizinhos, Condrieu chegou muito mais perto do
desaparecimento, com míseros 12ha cultivados na década de 1960, em sua maioria
destinados a produção de um estilo doce, absolutamente desconhecido fora dos círculos
locais.
Um renovado interesse por seus brancos, deliciosamente
aromáticos, com corpo e presença de boca, trouxeram os vinhedos hoje para mais
de 200ha, alcançando prestígio e respeito com vinhos que em função de sua
acidez mais baixa, na opinião de muitos, são mais bem consumidos em seus
primeiros anos. Ainda que não falte quem defenda seu potencial de guarda.
Os vinhedos de Condrieu se estendem rumo sul além da
cidade de Chavanay, já parte da apelação Saint Joseph. Os solos de granito
decomposto permitem uma adequada maturação da Viognier, ainda que com uma dose
de dificuldade, por tratar-se de uma casta naturalmente de baixo rendimento e suscetível
a uma série de doenças.
Uma curiosidade sobre a apelação Condrieu é a
existência, dentro dela, de uma das menores AOCs da França e uma das poucas que
constitui um monopólio, ou seja, pertence toda a um único produtor. Com 3.5ha
em um privilegiado anfiteatro de vinhas está Château Grillet, criada em 1936 e
desde 2011 pertencente ao grupo Artemis, proprietários do Château Latour. Com uma
clássica garrafa alongada e um rótulo espartano, chama por vezes a atenção amis
pela raridade do que pelo aspecto qualitativo, mas é fato que entrega vinhos
distintos e que os novos proprietários vêm aplicando todos os esforços na
produção de vinhos que façam jus a fama e a exclusividade.
Hoje as apelações de Côte-Rôtie e Condrieu são uma
realidade no mundo do vinho, desejadas e respeitadas, algo que certamente
precisa compor uma boa adega. Mas não custa aproveitar esse histórico tão
recente para considerar, qual será o grande clássico que passará por um
renascimento nas próximas décadas?
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não se esqueça de deixar o seu contato para eventuais respostas, ok?