segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Galícia - Escanção

 

Galícia, Entre Montanhas e Cinzas

Nas últimas semanas, as notícias que chegaram da Galícia não foram das mais animadoras: grandes incêndios florestais devastaram áreas rurais e vitícolas, como tem sido o caso também em Portugal, trazendo destruição a uma região já marcada por paisagens de rara beleza e uma profunda tradição agrícola. Embora as perdas ainda estejam sendo avaliadas, o impacto ambiental é significativo e serve de lembrança da fragilidade dos ecossistemas que sustentam a viticultura. Para além da tragédia, porém, é preciso lembrar que a Galícia é uma terra de resiliência, acostumada a desafios naturais e humanos, e que os seus vinhos carregam justamente essa marca de resistência e singularidade.

Situada no extremo noroeste da Península Ibérica, a Galícia é uma região de forte identidade cultural, onde o galego convive com o castelhano, e onde o Atlântico dita os ritmos da vida e da produção agrícola. Conhecida internacionalmente mais pela DO Rías Baixas e seus Albariños, a Galícia guarda, entretanto, um mosaico de outras denominações e estilos que merecem igual atenção, sobretudo quando buscamos compreender a riqueza de seu terroir.

Entre as regiões mais notáveis está a DO Ribeiro, nas margens do rio Miño, talvez a denominação mais histórica da Galícia, com registros de produção vinícola desde a Idade Média. Aqui predominam os brancos baseados em Treixadura, muitas vezes em cortes com Godello, Loureira ou Albariño. O estilo é marcado por frescor, elegância e um delicado caráter frutado, vinhos que encontram paralelo imediato nos vizinhos portugueses do Minho, onde essas mesmas castas têm presença significativa. Não por acaso, a linha fronteiriça parece mais geográfica do que cultural: o vinho flui com naturalidade entre os dois lados.

Seguindo para o interior, encontramos a DO Valdeorras, localizada ao longo do rio Sil, já em zona de transição entre o Atlântico e a influência continental. É o território por excelência da Godello, variedade que aqui atinge talvez sua expressão mais sofisticada. Os vinhos de Godello de Valdeorras combinam frescor mineral e estrutura, com aptidão para guarda, rivalizando em prestígio com grandes brancos da península. Também aparecem tintos notáveis, sobretudo de Mencía, com um perfil elegante e floral.

A própria Mencía é protagonista na DO Ribeira Sacra, cujos vinhedos em socalcos impressionam pela dramaticidade: encostas abruptas que se debruçam sobre os rios Miño e Sil, formando um dos cenários mais espetaculares da viticultura europeia. Aqui, a viticultura heroica não é apenas um conceito, mas uma realidade cotidiana. Os vinhos tintos da região, de médio corpo, frescos e expressivos, têm conquistado reconhecimento internacional, frequentemente comparados a exemplares da vizinha região portuguesa do Dão, onde a mesma casta também se destaca, ali denominada Jaén.

Mais ao sul, na fronteira com Portugal, está a DO Monterrei, talvez a menos conhecida entre as denominações galegas, mas não menos relevante. Pequena em área, tem tradição de brancos aromáticos de Godello e Treixadura, além de tintos de Mencía e Merenzao (sinônimo da Trousseau/Bastardo), mostrando a mesma paleta de castas que dá identidade ao noroeste ibérico. A proximidade cultural e geográfica com Trás-os-Montes e o Douro português reforça ainda mais a sensação de continuidade.

Por fim, vale lembrar a DO Ribeira do Ulla, historicamente menos expressiva, mas em processo de revitalização, também apoiada em brancos de corte atlântico e em tintos de perfil mais leve.

Em todas essas denominações, o que se observa é a centralidade das castas que também estruturam a vitivinicultura do norte de Portugal: Godello (Verdelho), Treixadura (Trajadura), Loureira (Loureiro), Mencía (Jaen) e Merenzao (Trousseau/Bastardo). Essa partilha não é mera coincidência, mas reflexo de séculos de circulação de pessoas, práticas e videiras por uma região que, antes de ser fronteira, foi espaço de encontro.

A Galícia vinícola, portanto, vai muito além do Albariño e de Rías Baixas. É um território de diversidade e profundidade, marcado por vinhedos que desafiam a geografia, castas que cruzam fronteiras e uma tradição que soube sobreviver a crises, proibições e segue sobrevivendo as chamas. Para o escanção atento, trata-se de uma região que exige estudo, respeito e atenção, não apenas pela beleza de seus vinhos, mas pela força simbólica de uma viticultura que insiste em permanecer viva contra todas as adversidades.

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