Galícia, Entre Montanhas e Cinzas
Nas últimas semanas, as notícias
que chegaram da Galícia não foram das mais animadoras: grandes incêndios
florestais devastaram áreas rurais e vitícolas, como tem sido o caso também em
Portugal, trazendo destruição a uma região já marcada por paisagens de rara
beleza e uma profunda tradição agrícola. Embora as perdas ainda estejam sendo
avaliadas, o impacto ambiental é significativo e serve de lembrança da
fragilidade dos ecossistemas que sustentam a viticultura. Para além da
tragédia, porém, é preciso lembrar que a Galícia é uma terra de resiliência,
acostumada a desafios naturais e humanos, e que os seus vinhos carregam
justamente essa marca de resistência e singularidade.
Situada no extremo noroeste da
Península Ibérica, a Galícia é uma região de forte identidade cultural, onde o
galego convive com o castelhano, e onde o Atlântico dita os ritmos da vida e da
produção agrícola. Conhecida internacionalmente mais pela DO Rías Baixas e seus
Albariños, a Galícia guarda, entretanto, um mosaico de outras denominações e
estilos que merecem igual atenção, sobretudo quando buscamos compreender a
riqueza de seu terroir.
Entre as regiões mais notáveis está
a DO Ribeiro, nas margens do rio Miño, talvez a denominação mais histórica da
Galícia, com registros de produção vinícola desde a Idade Média. Aqui
predominam os brancos baseados em Treixadura, muitas vezes em cortes com
Godello, Loureira ou Albariño. O estilo é marcado por frescor, elegância e um
delicado caráter frutado, vinhos que encontram paralelo imediato nos vizinhos
portugueses do Minho, onde essas mesmas castas têm presença significativa. Não
por acaso, a linha fronteiriça parece mais geográfica do que cultural: o vinho
flui com naturalidade entre os dois lados.
Seguindo para o interior,
encontramos a DO Valdeorras, localizada ao longo do rio Sil, já em zona de
transição entre o Atlântico e a influência continental. É o território por
excelência da Godello, variedade que aqui atinge talvez sua expressão mais sofisticada.
Os vinhos de Godello de Valdeorras combinam frescor mineral e estrutura, com
aptidão para guarda, rivalizando em prestígio com grandes brancos da península.
Também aparecem tintos notáveis, sobretudo de Mencía, com um perfil elegante e
floral.
A própria Mencía é protagonista na
DO Ribeira Sacra, cujos vinhedos em socalcos impressionam pela dramaticidade:
encostas abruptas que se debruçam sobre os rios Miño e Sil, formando um dos
cenários mais espetaculares da viticultura europeia. Aqui, a viticultura heroica
não é apenas um conceito, mas uma realidade cotidiana. Os vinhos tintos da
região, de médio corpo, frescos e expressivos, têm conquistado reconhecimento
internacional, frequentemente comparados a exemplares da vizinha região
portuguesa do Dão, onde a mesma casta também se destaca, ali denominada Jaén.
Mais ao sul, na fronteira com
Portugal, está a DO Monterrei, talvez a menos conhecida entre as denominações
galegas, mas não menos relevante. Pequena em área, tem tradição de brancos
aromáticos de Godello e Treixadura, além de tintos de Mencía e Merenzao
(sinônimo da Trousseau/Bastardo), mostrando a mesma paleta de castas que dá
identidade ao noroeste ibérico. A proximidade cultural e geográfica com
Trás-os-Montes e o Douro português reforça ainda mais a sensação de
continuidade.
Por fim, vale lembrar a DO Ribeira
do Ulla, historicamente menos expressiva, mas em processo de revitalização,
também apoiada em brancos de corte atlântico e em tintos de perfil mais leve.
Em todas essas denominações, o que
se observa é a centralidade das castas que também estruturam a vitivinicultura
do norte de Portugal: Godello (Verdelho), Treixadura (Trajadura), Loureira
(Loureiro), Mencía (Jaen) e Merenzao (Trousseau/Bastardo). Essa partilha não é
mera coincidência, mas reflexo de séculos de circulação de pessoas, práticas e
videiras por uma região que, antes de ser fronteira, foi espaço de encontro.
A Galícia vinícola, portanto, vai
muito além do Albariño e de Rías Baixas. É um território de diversidade e
profundidade, marcado por vinhedos que desafiam a geografia, castas que cruzam
fronteiras e uma tradição que soube sobreviver a crises, proibições e segue
sobrevivendo as chamas. Para o escanção atento, trata-se de uma região que
exige estudo, respeito e atenção, não apenas pela beleza de seus vinhos, mas
pela força simbólica de uma viticultura que insiste em permanecer viva contra
todas as adversidades.
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